O design da toada: o processo criativo na composição musical
Nesta publicação falarei sobre duas de minhas paixões: musica e design. Achou estranha a relação? Pois bem, posso explicar, mas para que entendam melhor como as duas vertentes se encontram, preciso que conheçam um pouquinho quem vos escreve.
Sou compositor de toadas há 13 anos. A toada é o nome dado ao ritmo do Boi-Bumbá de Parintins (cidade no interior do Amazonas) que no mês de Junho realiza um festival folclórico onde os bois Caprichoso e Garantido realizam apresentações pelo título de campeão. Para conhecer melhor meus trabalhos acesse minha playlist no spotify.
Em paralelo, trabalho há 7 anos na área de UX, já fui professor e hoje exerço a função de designer em um instituto de P&D no Amazonas. Nessa trajetória, assim como na de todo profissional de UX, é muito comum nos depararmos com um repertório de técnicas para nos auxiliar a solucionar problemas. Essas abordagens ajudam-nos a conhecer melhor o usuário, definir tratativas com stakeholders, gerar ideias de maneira colaborativa e muito mais. Ok, mas e na música?
Com o passar do tempo trabalhando com UX e tendo a musica como hobby, percebi que o processo criativo na composição não é tão diferente do de design. Claro que existem particularidades pois estamos falando de áreas diferentes que provém resultados diferentes, no entanto, ambos os processos possuem momentos similares, como: é necessário estudar determinada área (uma pesquisa bibliográfica ajudaria bastante), a cocriação é algo sempre presente, é importante entender o que o mercado oferece hoje e por aí vai.
Entendendo a presença dessas variáveis similares e movido pela curiosidade, realizei um experimento na construção de uma toada. Este experimento consistiu em aplicar técnicas de design no processo de composição musical, e a partir de agora mostrarei como foi toda essa pavulagem.
Musica e design são áreas distintas, porém podem se completar.
Inserindo o Design na Composição Musical
As apresentações dos bois de Parintins contam com momentos estratégicos, um deles é a apresentação da lenda amazônica, como exemplos conhecidos temos: Curupira, Cobra-grande e Matinta-Pereira. Estas lendas são apresentadas de forma cênica/alegórica nas apresentações dos bois.
Este experimento teve como objetivo desenvolver uma toada de lenda amazônica e foi realizado em 3 etapas: Imersão, Ideação e Validação. Designers já pegaram a referência, são etapas da metodologia Design Thinking com algumas adaptações.
Etapa 1: Imersão
Antes de começar qualquer projeto é necessário ter o entendimento claro sobre o que deve ser feito, no caso deste, parte já estava bem definida, seria um trabalho musical para retratar uma lenda amazônica. Porém, que lenda seria explorada?
Para obter essas definições, eu e meus parceiros de composição (Gabriel Moraes e Fellipe Salviano) realizamos uma pesquisa desk com o intuito de enriquecer nosso repertório sobre lendas, e fundamentar toda letra que viríamos a escrever. Também foram conduzidas pesquisas de campo, onde conversamos com especialistas da área: pesquisadores, antropólogos e membros de tribos indígenas. Todo este trabalho etnográfico forneceu insumos que expandiram nossas opções sobre o que fazer. Como resultado principal, tivemos acesso ao livro Crisálida: Uma viagem extraplanar de Pedro Massulo no qual o autor em sua viagem pelas regiões amazônicas narra a seguinte história:
O mito dos índios Wayana-Apalay que vivem no norte do Pará, eles viviam separados pelo rio Paru: de um lado Wayana e de outro Apalay. Contam que há muito tempo, os dois grupos tentavam se encontrar mas nunca conseguiram. Um grupo pensava que o outro matava seus índios, pois nunca alguém havia conseguido voltar para contar a história. Um dia os guerreiros Wayana estavam na região próxima dos aningais e viram um monstruoso lagarto de duas cabeças no igarapé, chamado Tuluperê, uma das cabeças só comia os Wayana e a outra os Apalay. Os índios lutaram contra o lagarto e o mataram, na pele do monstro estavam desenhos, estes que os índios passaram a copiar e utilizar como grafismos em suas cestarias.
Também tivemos acesso a outras histórias, como já dito a pesquisa forneceu muito material, mas optamos em seguir com a lenda Wayana-Apalay pelos seus fortes elementos e por estar alinhada com o tema do Boi Caprichoso (este é o boi para qual eu componho).
Após a definição da lenda, foi realizada uma analise de similares, ou seja, procuramos por tudo o que já havia sido feito a respeito da lenda escolhida, catalogamos e realizamos um estudo. Na mercado, essa analise de produtos se chama benchmarking e é uma prática muito comum entre designers. Na musica, darei um conselho aos compositores leitores dessa publicação: usem o Spotify, ele é uma excelente ferramenta para organizar playlists para estudo:
Depois de catalogar o benchmarking, é importante atentar para uma coisa: pode acontecer de existir algo nas musicas que inspire ideias para o projeto, isso é ótimo, mas muito cuidado, a intenção da analise é justamente para que possamos ter conhecimento do que já foi feito e partirmos para outro caminho, e assim construir algo inédito. Tenha referências, mas seja você, como compositor crie sua própria identidade/estilo.
Etapa 2: Ideação
Após obter as definições do que será feito e estar munido de boas referências, passamos para a etapa de ideação. Como o nome sugere, é o momento de gerar ideias para a musica, mas muita calma, ainda não é hora de pegar um instrumento musical e sair cantarolando as primeiras notas que vem na cabeça. Antes de ir a guerra é essencial que um soldado esteja bem equipado, assim é na musica, precisamos aguçar a criatividade para direcionar o pensamento.
No campo do design acontece de forma similar, quando precisamos realizar alguma atividade que exige carga criativa, como por exemplo o visual de uma interface, uma das primeiras coisas a se fazer é buscar referências visuais, ao final, criamos algo chamado Moodboard que nada mais é que um painel com varias referências e ideias que ajudam a transmitir a essência do produto, identificando o tom que ele deve seguir.
Neste experimento, criamos um moodboard para representar a lenda de maneira visual. Para a sua construção utilizamos strings de busca relacionadas a história Wayana-Apalay, como: lizard, monsters e war. As buscas em plataformas de imagens retornaram fotografias e artes conceituais incríveis que gerou inspiração ao mesmo tempo que nos fez imaginar um momento grandioso de apresentação.
Mas não só imagens atiçam a criatividade, assistir filmes, ouvir musicas de estilos diferentes, conversas com especialistas da área, e demais atividades enriquecem a bagagem cultural e expandem nosso repertório criativo.
A criatividade vem da maneira de se pensar e não do acaso misterioso.
Pronto! Agora que estamos com a cabeça explodindo de ideias, é hora de começar a construção da obra, para isso aplicamos um brainstroming. A técnica conhecidíssima no mercado consiste em uma reunião com todos os atores(compositores) envolvidos, estes irão sugerir ideias sem medo de julgamentos. Nossa sessão de brainstorming tinha o objetivo de adquirir insumos de poesia, logo cada membro enviou palavras/frases que poderiam fazer parte da letra final da toada. Como resultado, obtivemos o seguinte glossário:
O brainstorming é o ponto de partida para a criação dos artefatos musicais e escritos.
A partir de agora o trabalho é hands-on e não há regras. Muitos já me perguntaram, mas o que surge primeiro: letra ou melodia? E a resposta é aquele "depende" com os olhos para cima. E realmente depende, pois muitas vezes cantarolamos melodias para depois encaixar letra ou vice-versa. Isso já é o modus operandi pessoal de cada compositor.
As atividades de cocriação costumam prosseguir de maneira frenética, em nosso caso utilizamos aplicativos de comunicação como o whatsapp para transmitir nossas ideias de melodia/letra, é um processo cocriativo que com a ajuda de meus parceiros foi possível produzir uma obra de forma colaborativa. Na área de UX workshops de cocriação são essenciais para construir ideias junto de stakeholders, e na musica funciona da mesma maneira.
Enfim, o importante de tudo nesta etapa é estar munido de boas referências para partir para a criação. O começo é o momento mais caótico, pois não sabemos o que fazer, após ter definições mais claras, as coisas vão se encaixando naturalmente e uma hora a música sai, e outrora não sai.
Bloqueios criativos, desmotivação, fatores pessoais dentre inúmeros motivos podem influenciar a qualidade musical. Logo, seu estado de espírito é importante em qualquer projeto musical.
Faça, mude e principalmente pare.
É importante saber a hora de parar, é essencial detectar o momento em que você não está mais produzindo tão bem e dar uma pausa para continuar em um outro dia. Falo com muita propriedade que o mal de muitos compositores iniciantes é se empolgar com o início de uma música e se apressar para termina-la 10 minutos depois com as primeiras ideias que vem a cabeça, como resultado disso, nos depararmos com uma obra de qualidade duvidosa (sendo bem generoso).
Pois bem, depois de muito vai e vem, das eternas trocações de letras e melodias, deparamo-nos em um momento em que todos dizem: fechou! Acho que terminamos! E essa é a melhor toada que já fizemos.
Ainda não terminou, mas estamos quase lá.
Etapa 3: Validação
Ao final de qualquer trabalho de composição musical, nossos ouvidos já estão viciados nas linhas melódicas tantas vezes repetidas no processo de criação, e por isso precisamos de uma opinião de fora para validar o trabalho realizado. Então é hora de chamar as pessoas certas para apreciar a toada e ouvir as opiniões.
Muita cautela neste momento, é de suma importância saber quem convidar. Não é qualquer um que irá analisar a obra, então é bom estar atento sobre que tipo de opinião faz sentido ouvir: (1) opinião técnica e (2) opinião leiga, e esta última é o grande termômetro que irá medir a força musical, e eu posso explicar.
Uma opinião técnica seria de um músico, ou um outro compositor de confiança que poderá lhe auxiliar com acordes mais sofisticados, esse tipo de refinamento é muito valioso principalmente em meu caso que toco violão e charango apenas o básico (não sou musico profissional, sou compositor). Já a opinião leiga pode ser de qualquer amante do gênero (no meu caso gosto de mostrar para minha mãe, namorada e alguns amigos), esse tipo de pessoa representa a grande massa que irá ouvir a obra no futuro, portanto costumo dizer que são o termômetro da toada. Normalmente, eles demonstram mais sentimentos em seus feedbacks, então enquanto estiverem ouvindo a musica pela primeira vez, mesmo que você esteja tocando/cantando para eles, fique atento para captar suas expressões, comportamentos e entender o não-dito. Ao final, sempre pergunte o que acharam. Fazendo alusão ao design, podemos dizer que isso seria uma sessão de design critique.
O momento agora é de ter humildade e principalmente saber absorver o que foi dito, nem sempre acertamos de primeira e é importante refletir sobre as opiniões alheias que muitas vezes é adversa, e isso é bom, pois é o alerta de que falta algo.
“Baixe seu ego e sua força surgirá”
Anciã (2016), Doutor Estranho.
Realize as mudanças que você julgou necessário após as sessões de validação, se achar necessário, mostre novamente, mude novamente, e tenha sabedoria e sensibilidade para saber quando terminou. Por último, é hora de prototipar em alta-fidelidade, corra para o estúdio e não esqueça de levar seu benchmarking para inspirar os musicos que irão produzir sua obra.
Resultado Final
Ao final, a toada de lenda amazônica que retrata a guerra da tribo Wayana-Apalay contra a fera Tuluperê se chamou "A Batalha dos Três exércitos", e se tiver algum cinéfolo por aqui, espero que tenham pego a referência (Hobbit também estava no Benchmarking de filmes). Confiram abaixo o resultado final:
A toada "A Batalha dos Três Exércitos" faz parte do cd oficial de 2020 do Boi Caprichoso e foi uma obra que serviu de experimento para aplicar técnicas de design no processo de criação musical. Lembrem-se, nada do que foi dito aqui está escrito em pedra, apenas foi a forma como funcionou para nós.
Espero com essa publicação poder ajudar compositores a inserir novas abordagens em seu processo criativo e mostrar aos meus colegas de profissão que até mesmo na musica os processos são adaptáveis.
Obrigado por ter lido até aqui.